O Corpo Desejante e a Alma que Sonha
Por Dra. Marina Xavier — Psicanalista e Analista Junguiana
“Há em todo desejo uma memória do divino.”
O corpo é o primeiro altar onde o inconsciente se manifesta.
Antes de qualquer palavra, é o gesto, o arrepio, o tremor que fala — uma linguagem arcaica e sagrada.
É nesse intervalo, entre o invisível e o sensível, que habita o Eros. Jung compreendia o corpo não apenas como uma estrutura biológica, mas como um símbolo vivo do inconsciente.
“O corpo é a base da psique. Sem ele, a alma se torna como um pássaro sem ninho.”
— Jung, Collected Works, vol. 8, §619
O corpo, portanto, é mais que um invólucro — é o solo fértil onde a alma floresce, onde os desejos revelam seus significados ocultos.
Freud, por sua vez, foi o primeiro a dar voz ao desejo como força constitutiva do ser.
A libido, para ele, é a energia vital que atravessa o corpo e organiza a experiência humana.
“A energia dos instintos que se relacionam com o que podemos chamar, de forma abrangente, amor, é designada por nós como libido.”
— Freud, Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, 1905
Para Freud, o desejo busca descarga; para Jung, busca sentido.
Freud via na sexualidade o alicerce da psique; Jung via no Eros a ponte entre o instinto e o espírito.
Entre os dois, há um mesmo reconhecimento: o desejo é o coração pulsante da alma humana.
O corpo como inconsciente vivo
O corpo guarda em si o que a consciência não suporta lembrar.
Cada tensão, cada contração, cada prazer contido é uma mensagem do inconsciente.
O corpo, como dizia Jung, é a matéria através da qual o espírito se expressa; e como afirmava Freud, é nele que o recalcado encontra forma, gesto, sintoma.
“As pulsões são representantes psíquicos das forças somáticas.”
— Freud, O Ego e o Id, 1923
Quando o corpo se contrai, é a alma que se defende.
Quando o corpo se abre, é a alma que confia.
E quando o corpo deseja, é o inconsciente que chama.
No erotismo, o corpo fala a língua mais antiga do mundo — a língua dos deuses e dos sonhos.
É o território onde o humano toca o sagrado, onde o prazer se transforma em revelação.
Por isso, negar o corpo é amputar a alma; reprimir o desejo é silenciar o próprio Eros, o mensageiro do inconsciente.
Eros como força de ligação
Freud apontou o desejo como impulso vital, enquanto Jung o compreendeu como força de união — um chamado à totalidade.
“Eros é um poder da natureza, que exige o todo do ser humano.”
— Jung, The Psychology of the Transference, 1946
O Eros junguiano não é apenas desejo sexual; é o princípio de ligação entre o eu e o outro, entre a consciência e o inconsciente.
É o que nos empurra ao encontro, à fusão, à entrega — não apenas física, mas simbólica.
No campo analítico, o Eros manifesta-se como o impulso de integração: tudo aquilo que foi separado, negado ou esquecido busca se reunir.
Assim, o amor e o desejo não são antagônicos ao espírito — são expressões do próprio processo de individuação.
A alma erótica
A alma, quando desperta, reconhece que o prazer não é apenas carnal, mas espiritual.
Cada desejo contém um anseio arquetípico: a vontade de retornar ao Uno, à totalidade perdida.
Jung via nisso a alquimia da existência — o processo em que o instinto se torna símbolo, e o corpo, templo de consciência.
Freud diria que o desejo é o eco da infância; Jung diria que é o chamado da alma para se tornar inteira.
E ambos, em suas diferenças, convergiriam no mesmo ponto: o desejo é o caminho pelo qual o humano se revela.
Reflexão Final
O corpo é o livro que a alma escreve em silêncio.
Quem ousa escutá-lo descobre que cada dor, cada prazer, cada arrepio é uma oração antiga, pedindo tradução.
Na linguagem do Eros, não há pecado — há potência.
Não há culpa — há força vital buscando expressão. E quando o ser humano deixa de temer o próprio corpo e o acolhe como extensão da alma, algo sagrado acontece:
o instinto se torna sabedoria,
o prazer se torna prece,
e o desejo — tão humano, tão terreno — torna-se o caminho de volta ao divino.
📚 Referências
- Freud, S. (1905). Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
- Freud, S. (1923). O Ego e o Id. In: Edição Standard Brasileira, vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
- Jung, C. G. (1946). The Psychology of the Transference. In: Collected Works, vol. 16. Princeton: Princeton University Press, 1966.
- Jung, C. G. (1954). The Practice of Psychotherapy. In: Collected Works, vol. 16. Princeton: Princeton University Press, 1966.
- Jung, C. G. (1958). Psychology and Religion: West and East. In: Collected Works, vol. 11. Princeton: Princeton University Press, 1969.



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